26 dezembro 2007

A Noite da Feira Popular

Como tantas vezes acontecia, certo dia fomos ao Pinto e bebemos uns valentes copos. Nesse dia, estávamos eu, o Branquinho, o Tomásio e o Marralheiro e, como também era costume, lá estava o Sr. Pinto “das Barbas”. O Sr. Pinto “das Barbas” (que Deus o tenha) era um daqueles clientes habituais no Pinto e era raro, mas mesmo muito raro, irmos ao Pinto e ele lá não estar ou não aparecer e, como frequentávamos aquilo com mesmo muita frequência, acabámos por também criar laços com o homem, que era uma pessoa com ideias muito diferentes das nossas, mas era da discussão que deveria nascer a luz (infelizmente, nunca conseguimos fazer nascer luz naquela cabeça esquerdista).
Lembro-me que, nesse dia, tivemos uma conversa com ele de que ainda hoje falamos com muita frequência, pois, já não sei a que propósito, ele disse que às x horas a mulher teria o jantar na mesa, ao que lhe perguntámos o que aconteceria se não estivesse:
- Está – respondeu ele.
- Mas e se não estiver? – perguntou um de nós.
- Está!
- Mas, Sr. Pinto, e se, por acaso, não estiver?
- Está!
-Ó Sr. Pinto, mas se, por algum motivo esquisito, o jantar não estiver…
-Ó pá, se eu te estou a dizer que está, é porque está! – interrompeu ele, sem nos deixar, sequer, acabar a frase.
- Ó Sr. Pinto… mas e se um dia não estiver? O que fará?
- Rifo-a! – concluiu ele, sem hesitações.
Então alguém comentou:
- Quer dizer que a sua mulher só está lá para lhe fazer a comida?...
- Para fazer a comida e para levar com o chouriço!... – rematou o homem.
Como, nessa altura, andávamos com a mania de que, tal como os antigos, havíamos de ir assaltar capoeiras, acabámos por lhe perguntar, mais à frente, se ele não tinha capoeira lá em casa, ao que ele disse que sim. Entusiasmados com a ideia de lhe ir à capoeira, perguntámos-lhe onde vivia ele, ao que nos respondeu que era na Rua do Loureiro, nº qualquer coisa. Nesta altura, calámo-nos, mas ele continuou, após dois ou três segundos de pausa, olhando para quem lhe fizera a última pergunta: “tenho lá uma capoeira e um sarrafo atrás da porta, para te dar com ele nas costas!”.
Quando saímos do Pinto, resolvemos ir à Feira Popular, que estava no Choupalinho (onde hoje é o Queimódromo), e descemos a rua em direcção à Sé Velha; já no Largo da Sé Velha, encontrámos um guarda-nocturno, e fomos-lhe perguntar onde é que ficava a Rua do Loureiro; o velhote lá respondeu e agradecemos-lhe, adiantando-lhe que sabíamos que “lá havia uma capoeira e que queríamos lá ir roubar galinhas nessa noite”.
- Já agora, - disse um de nós – a que horas é que o Sr. não vai andar por lá, de certeza, que é para não o encontrarmos?
- Entre as duas e as três, não andarei lá de certeza!
Dali seguimos até à Baixa e descobrimos que havia um concerto do Luís Represas na Praça do Comércio, pelo que resolvemos passar lá; chegámos mesmo na altura em que o sujeito estava a acabar o concerto e, qual não é o meu espanto, quando o vejo saudar o público ali presente e entrar, a correr, pela igreja de S. Tiago dentro – igreja que lhe servia de camarim. Perante isto fiquei muito revoltado e fui chatear um gajo qualquer da organização, pois era “uma vergonha que uma igreja que estava sempre fechada para quem quisesse rezar, estivesse a servir de camarim a um indivíduo que nitidamente não tinha qualquer respeito por Deus, uma vez que ali tinha entrado a correr” e pior: “sem sequer se benzer!!”.
Imagino a seca que devo ter dado ao homem, mas o indivíduo, sempre educado, disse-me para ir falar com a Vereadora, dizendo-me onde estava ela e quem era. Fui então chatear a Vereadora, ainda muito revoltado, e lá lhe dei outra seca, acerca do Represas “entrar a correr numa igreja” e “sem sequer se benzer!”.
Mais à frente, já no Largo da Portagem, havia um acidente de automóvel e, claro, parámos para ver o que se passava e para participar… Os polícias andavam com fitas métricas e o Marralheiro, lá no meio deles, atrapalhava… A certa altura perguntou a um polícia:
- Se eu for com o meu copito pela rua e for atropelado, de quem é a culpa?
- É sua – respondeu o polícia.
- Essa agora! – indignou-se o Marralheiro – Então um homem já não pode beber um copito, que se for atropelado a culpa é dele?!?
Dali seguimos até à Feira Popular, com a intenção de entrar sem pagar. Pelo caminho encontrámos a mãe da Paula Pita a vender tremoços e pevides e decidimos comprar-lhe um saquinho de tremoços, que estavam azedos que não se podiam tragar (mais tarde, em conversa com a filha, viemos a ser esclarecidos que os tremoços não estavam azedos, mas sim amargos – boa!). Ao chegar à entrada da feira, reparámos que não dava grandes hipóteses de entrar sem pagar, por isso resolvemos utilizar a técnica dos desentendidos e toca de entrar, sem hesitar, pela feira dentro! Logo apareceu um energúmeno qualquer a mandar-nos parar e a pedir-nos o bilhete.
- O bilhete? Mas qual bilhete? – perguntámos.
- O bilhete para entrar… - respondeu.
- Para entrar? Mas nós queremos entrar sem pagar… onde se entra sem pagar?
- Sem pagar, é ali ao lado.
Lá fomos para a porta imediatamente ao lado, que era para quem tivesse convites, para jornalistas, polícias, etc. e toca de entrar como se nada fosse.
- Mas onde pensam que vão? – pergunta um homem, interrompendo-nos a marcha.
- À feira – respondemos.
- Mas a entrada é daquele lado...
- Mas aqui não se paga…
- Não.
- Lá está, por isso estamos aqui. O senhor daquela porta disse que era aqui que se entrava sem pagar, e como nós não queremos pagar, estamos no sítio certo.
- Os senhores têm convite?
- Não!
- Então têm que comprar bilhete e entrar naquela porta.
Fomos à outra porta, muito chateados com o segurança:
- O sr. disse que ali se entrava sem pagar e, afinal, era mentira.
A partir daqui gerou-se alguma discussão, o homem não nos queria deixar entrar, nós barafustámos, dissemos que éramos pobres, que era uma vergonha querer fazer estudantes, que davam vida à cidade e à custa de quem a cidade vivia, pagar; ainda tentei sondar o espaço entre a vedação e o rio, mas nada resultou. Ante a renitência do segurança em não nos deixar entrar sem pagar, e a nossa em não querer pagar o bilhete, acabámos por nos pôr os quatro, lado a lado, em frente à porta, a impedir as pessoas de entrar. O gajo, cada vez mais enervado, começou a mandar-nos sair da frente da entrada, ao que o Branquinho retorquiu:
- Essa agora! Então o sr. primeiro impede-nos de estar aí dentro e agora também nos quer impedir de estar cá fora?!?...
Nesta altura, o segurança, já com os nervos em franja, e a ver-nos a impedir as pessoas com bilhete de entrar, puxou-nos para dentro e lá fomos nós – objectivo cumprido!
Lá demos a nossa volta, lá fizemos nem sei bem o quê, até que, ao passar em frente de um restaurante, deparámos com uma cara conhecida nossa: o Sr. do bar das matemáticas! Fomos cumprimentá-lo e ele convidou-nos para nos sentarmos e bebermos um copo com ele e com a Sra. que estava com ele. Foi um forrobodó! Nós estávamos habituados a beber carrascão e naquele dia era “Terras d’ el Rei”. O que, para nós, à época, era um néctar dos Deuses! Nem sei se vieram sete, se vieram oito, se vieram nove, ou dez garrafas… Sei que, cada garrafa que chegava, era um copo para cada um, o que nos deu novo reforço de “pitróil”. O homem já estava como havia de ir, e nós não ficávamos atrás. Sei que por lá ficámos um bom bocado a falar com ele, até que decidimos ir embora.
Nesta altura, o Marralheiro começou a ficar com fome; enquanto começámos a dar seca ao presidente da junta de freguesia de Santa Clara (não me perguntem como surgiu esta situação, pois não me lembro) o Marralheiro desapareceu por baixo da porta de uma barraca restaurante, que já estava fechada até meia altura. Também aqui não me lembro do que falámos nem de quanto tempo estivemos ao paleio com o homem, só me lembro de, a certa altura, ver o Marralheiro a sair do restaurante com uma perna de frango na mão: estivera para lá a dar seca não sei a quem e lá conseguiu sacar o sustento.
Entretanto, a noite já ia avançada e eu tinha a minha mãe em Coimbra, por isso aproveitei a boleia do Branquinho e lá fomos os dois para casa. Só que a mais longa noite (em termos de peripécias) da malta, não acabou aqui, pois o Tomásio e o Marralheiro ficaram… Ficaram e foram fazer das suas!
Primeiro, tentaram roubar uma das bandeiras que estavam afixadas por muitos postes de Coimbra. Mas sem sucesso: as bandeiras estavam muito altas e acabaram por desistir (atitude sensata, pois mais vale desistir do que se aleijarem a sério). Depois foram procurar alguma outra coisa para roubar, pois tinham prometido entre si que não voltavam para casa, nessa noite, sem roubar nada. Andaram, procuraram, e não encontravam nada de jeito. A certa altura, viram um estendal qualquer, na Alta, mas a única coisa que lá estava pendurada era um trapo velho, todo roto. Não fazia mal, pois se não se arranjava mais nada, ia aquilo mesmo, ainda por cima nós estávamos especialistas a roubar estendais (o antigo vizinho da primeira casa do Marralheiro em Coimbra, que o diga, como já contei). Palmaram o trapo velho e estavam para se vir embora, quando começaram a ter remorsos: e se aquele trapo velho e roto era de alguma velhinha pobrezinha, a quem aquilo ia fazer falta… Voltaram atrás e foram lá meter o pano outra vez. Mas estavam novamente com o mesmo problema: não tinham roubado nada e não podiam voltar de mãos a abanar, como tinham prometido (e não queriam cortar as mãos, para não voltarem de mãos a abanar). Por isso, decidiram roubar a campainha de uma República; estavam eles na árdua tarefa de desaparafusar a campainha, quando, por descuido (bêbados, não é?), fizeram a campainha tocar e tiveram que fugir. Mais uma tentativa falhada. Mas as coisas não podiam falhar sempre, com estes dois persistentes rapazes. Já não sei se foi na República em que tentaram roubar a campainha ou se foi noutra, encontraram uns ratos secos atados a uma corda, à porta. Magnífico! Era uma coisa linda, roubava-se uma República (lembro aqui que, incoerentemente, as Repúblicas de Coimbra são quase todas anti-Praxe – vivem à custa da Praxe através de regalias dadas pelos Serviços de Acção Social da Universidade de Coimbra, mas são contra a Praxe), e, ainda por cima, roubar aquilo era como tirar um doce da mão de uma criancinha (hoje isso é mais complicado, pois as criancinhas são malcriadas que mete medo e fazem um berreiro por tudo e por nada!).
E pronto (e prontos, como se diz agora), lá voltaram para casa, felizes e contentes, e lá foram os ratos secos parar ao Convénus Mustinto.
Assim, quem leu o segundo post deste Blog, em Abril de 2006, acerca das referencias à Irmandade das Sombras na net e teve a curiosidade de ver o link que lá está e viu que se fala dos ratos secos na porta da nossa antiga sede, e quem viu as fotos que estão nesse post, já fica a saber de onde vieram os ratos…

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