11 outubro 2006

Tempos de Inocência

Será muito difícil contar aqui todas as histórias de todas as bebedeiras que apanhei por Coimbra. Até porque, apesar de todas as bebedeiras terem uma história, a maior parte delas não tem história que valha a pena aqui gastar um segundo a escrevê-la, ou a história é desagradável e eu quero é esquecê-la ou até já me esqueci da maior parte delas. Por isso, e não querendo passar aqui a ideia de que nós éramos uns bêbados arruaceiros (uma amiga minha escreveu-me na dedicatória da plaquete “para o arruaceiro do Batinas”) vou contar aqui apenas algumas. Por isso, vou escrever sobre algumas dos anos mais inocentes, ou seja, dos primeiros quatro ou cinco anos de estudante de Coimbra, da altura em que andávamos um bocado à descoberta do que era esta cidade mágica ou de quando achávamos que ainda podíamos mudar o mundo e, sobretudo, o rumo descendente que a Praxe estava a levar e que, por alguns anos, foi atenuado, um bocado por culpa destes “marretas” sonhadores que foram a Irmandade das Sombras.
Confesso que, quando fui para Coimbra, nunca tinha apanhado uma bebedeira e nem sequer bebia bebidas alcoólicas e que quando o Branquinho e o João Gouveia me começaram a desencaminhar das aulas para ir à tarde ao Pratas para beber um copo de traçadinho “com muita gasosa”, eu ficava logo tonto; e que a minha primeira bebedeira foi no dia 14 e Fevereiro de 1992 (eu entrara para a Universidade em Outubro de 1991), com 4 cervejas, para ter coragem de me declarar a uma caloira de Letras que veio a ser a minha primeira namorada e que, quando acabou comigo, um mês depois, vi o mundo desabar; confesso isso, mas reconheço que acabei por ser um dos bêbados mais famosos de Coimbra – mas, como dizia o meu padrinho, o Brandão, “mais vale ser um bêbado conhecido, do que um alcoólico anónimo!”.
Assim, conheci essa minha primeira namorada numa serenata que o João Gouveia e o Branquinho resolveram fazer a essa moça e a outra, pouco tempo depois de as conhecerem. Mas como consegui eu sair de casa da minha tia – a tia Cidalina – se eu era um rapaz ainda pacato na altura e se não tinha o hábito nem a ousadia de sair de casa à noite? E, ainda por cima, na época de exames? Tivemos que arranjar um estratagema para essa saída, e aí está uma das minhas primeiras velhacarias em Coimbra!
Foi assim que o João Gouveia foi a minha casa fazer de conta que íamos estudar; entretanto chega a minha tia que, vendo-nos com os livros abertos na sala, soltou o seu velho slogan: ”estudem, estudem, que para vocês é!”. Nessa tarde desfez-se em gentilezas e até nos foi servir o lanche, altura em que deu para conhecer o meu colega, a ver se ele era de boa rês; ele contou que era de Vila Nova de Fozcôa, que a viagem demorava muitas horas, mas que aproveitava sempre para estudar pelo caminho; a minha tia arfava de satisfação com o amigo exemplar que eu arranjara (um dos maiores bêbados e cábulas da altura) e lá saiu da sala; “agarrem-se a verbo”, concluiu, saindo. Ficámos mais um bocado na sala, pouco estudando, mais cochichando que ela o tinha adorado e antevendo já, não sem alguma excitação, a noite que se avizinhava. Passado um bocado, achámos que já chegava de tanto fingimento e pouco estudo e lá decidimos dar por terminada aquela parte da farsa e passar à fase seguinte. Levantámo-nos então e saímos da sala, o que fez a minha tia aparecer de imediato: “então, já estudaram tudo?”; era o que queríamos ouvir e o João Gouveia atalhou: “já não falta muito, mas convinha acabarmos esta parte da matéria ainda hoje; passas lá em casa hoje, depois de jantar?”; olhei para a minha tia com um ar fingido de quem não sabia se havia de sair à noite, mas ela, perguntando onde morava ele, e vendo que não era muito longe, deu um forte apoio. E foi aqui que surgiu uma das frases que ficou um marco na minha vida de estudante, quando o JG, após salientar, mais uma vez, a importância que era acabar aquela parte da matéria naquele dia e lamentar o incómodo que era ter que sair de casa de noite para estudar, concluiu: “é que nós estamos em Coimbra é para estudar, não é para mais nada!”.
Outra vez, já no segundo ano, numa altura em que eu já começara a beber uns copos e a apanhar umas bebedeiras mais ou menos espaçadas, o pessoal do meu ano resolveu fazer uma espécie de jantar de curso. Digo “uma espécie” porque não foi feito nos moldes normais; num dia qualquer, um grupo relativamente grande de colegas lembraram-se de irmos todos jantar juntos à cantina. Eu comi uns bifes com cogumelos e bebi quase uma garrafa de vinho (na altura!); claro que apanhei uma grande bebedeira e decidi, a certa altura, ir embora para casa; pus pés ao caminho e lá fui, a pé – como era costume na época – até aos Olivais. Quando cheguei a casa achei que já estava melhor e deitei-me. Só que, passados alguns instantes, comecei a ver tudo a andar à roda e tentei ver se ficava melhor, sentando-me na cama; nada adiantou e comecei a ter uma vontade imensa de vomitar e levantei-me; o vómito começou a afluir-me à boca e eu a correr em direcção à porta; abria-a, meti as mãos à boca que já estava cheia de vomitado, com a intenção de evitar que ele saísse boca fora, mas era impossível e ele caía já pelo chão do corredor, deixando um rasto até à casa de banho. Nesta altura a minha tia levanta-se e vem ver o que se passa, ao que lhe respondo que estava a vomitar devido a um bife com cogumelos que comera na cantina e que não devia estar bom; ela leva-me para a cama e vai buscar um alguidar para eu poder vomitar à vontade; vomitei uma substância escura – o vinho tinto – e ela pergunta que raio era aquilo tão escuro, ao que lhe respondi que tinha bebido uma coca cola… Terá ela acreditado? Não sei, nem nunca vou saber.
A propósito de vomitar em casa, lembra-me de outra história gira em que também cheguei a casa muito bêbado e fui para a cama; também dessa vez vi tudo a andar à roda e necessitei de ir vomitar, mas a coisa não foi tão aflitiva e tive tempo de organizar a coisa toda. Como a minha tia iria ouvir de certeza o meu vómito na casa de banho (que era ao pé do quarto dela), fui para o quarto do meu padrinho, o Brandão, que era do outro lado da casa, ao fundo de um comprido corredor. Acordei o desgraçado às tantas da manhã, abri a janela do quarto (a casa da minha tia era numas águas furtadas), saltei para a janela e desatei a vomitar para o telhado da vizinha de baixo, que ficava ali bem perto; acontece que, do lado de fora da janela, havia um pedaço de telhado que era de lata e acabei por fazer um bocado de barulho com os pés, o que fez com que acordasse o vizinho e ele viesse cá fora; começou o pobre homem a descompor-me, a dizer que aquilo não eram horas para fazer barulho, nem sítio para vomitar; como já tinha feito o serviço todo, pedi desculpa e saí da janela. Só que havia ali um problema: como iria eu justificar a minha presença, a altas horas da noite, no quarto do Brandão, a vomitar da janela dele, que era um rapaz que pouco saía, que se deitava sempre cedo e que, também naquele dia, como a minha tia bem sabia, se deitara cedo? Bem, como ambos usávamos barba e eu estava numa janela iluminada que não devia dar para ver bem quem era com a cara na sombra provocada pela luz por trás e como o homem estaria estremunhado, resolvemos que, no dia seguinte, o pobre Brandão (que, por acaso e como a minha tia sabia, tinha problemas de estômago) iria pedir desculpa aos vizinhos de baixo (que, também, por sorte, gostavam muito dele) por ter vomitado no telhado àquela hora, mas é que se sentira muito mal de repente e não tivera tempo de ir à casa de banho. Eles, já mais recompostos, alegaram que julgavam que tinha sido eu, que lhes parecera mesmo que era eu (Batinas) e não ele (Brandão), mas que tudo estava bem, que já tinha passado. Como é obvio, a minha tia soube que o Brandão tinha vomitado no telhado, disse que aquilo era por causa da garrafita de whisky onde ele, muito raramente, dava um gole, mas as coisas ficaram todas em águas de bacalhau, até porque também a minha tia adorava o Brandão, pois ele saía pouco em “moinas”, era o único hóspede que lhe fazia alguma companhia e foi ele que a ajudou muito, certa vez que ela esteve doente, a dar-lhe os comprimidos à hora certa.
Para terminar por hoje, vou contar uma história, também engraçada, que se passou no início da minha 4º matrícula, numa altura em que vivíamos em casa da minha tia eu, o Brandão, o Marralheiro e o Salgueiro.
Como era costume nesses anos (minhas 3º e 4º matrículas – 1993, 1994, 1995) eu, o Marralheiro, o Salgueiro e o Tomásio, tínhamos muito o hábito de ir até à Baixa e entrar nas tascas a beber uns copos (foi até nessa altura que comprei um biberão, que enchia de vinho, e andava a beber pelas ruas da baixa, pelo dito, até ficarmos com os copos). Nessas ocasiões, por vezes, algum ficava um bocado pior que os outros e tinha que ir para casa mais cedo. Ora, na história que vou contar, quem ficou pior e se fartou de vomitar, fui eu. O pessoal viu que eu tinha que me ir deitar e eu também vi isso, só que estávamos com um problema: ainda era cedo e a minha tia ainda estaria na sala a ver televisão, por isso eu não podia ir logo para casa ou seria visto, o que não podia acontecer… Pensámos então num plano e resolvemos pô-lo em prática: o Marralheiro entrava em casa e ia até à sala distrair a minha tia, eu entrava com o Salgueiro para o quarto dele e do Marralheiro, deitava-me, e eles saíam, sem que a minha tia visse o Salgueiro, ficando eu deitado na cama dele. Assim se fez, e a minha tia não se apercebeu da “marosca”. Só que, não tendo a certeza se estava, ou não, sozinha em casa, a minha tia, ao sair da sala para se ir deitar, resolveu ir averiguar o estado de solidão da casa e, sem sequer bater à porta – pois estava convencida que estava sozinha – entra pelo quarto do Marralheiro e do Salgueiro dentro, perguntando se estava ali alguém e acendendo logo a luz. Só tive tempo de tapar a cabeça com os lençóis e dizer: “Hã? Hã? Diga…”. A pobre senhora, pensando que era o Salgueiro que estava na cama, apagou imediatamente a luz e saiu do quarto, entre desculpas ao “Sr. Doutor”. Foi mais uma de que me safei, e só tive que a ouvir resmungar, no dia a seguir, pelo facto de ter chegado a casa tão tarde, pois, supostamente, eu cheguei com o Marralheiro, às tantas, pois a essa hora eu tive que me levantar da cama do Salgueiro e ir para a minha, ficando, para a minha tia, o registo de mais uma noitada até às tantas e os habituais sarcasmos de que andava a “tirar um curso de guarda nocturno”. Enfim, injustiças deste mundo!

1 comentário:

Anónimo disse...

Olha lá ó Batinas, olha que a estória ainda é mais complexa do que pensas... nessa tarde e noite passaram-se mais coisas... tu é que não te deves lembrar!!!
Um dia talvez te conte...

Abraços João Gouveia

rapadex@hotmail.com