12 janeiro 2007

Pela Baixa de Coimbra

Durante alguns anos, sobretudo nos dois primeiros anos em que o Marralheiro e o Tomásio estiveram em Coimbra, tínhamos muito o costume de ir até à Baixa e, depois, logo se via o que acontecia… o normal era acabar em bebedeira!
Já aqui contei aquela em que acabei deitado na cama do Salgueiro, para a minha tia não me ver a chegar a casa, e também já falei do biberão cheio de vinho que eu passeava na Baixa, bebendo à vista de toda a gente, mas há muito mais lembranças para aqui deixar registadas. Vou lembrar algumas hoje.
Naquela altura, muitas vezes, deixávamo-nos levar pelas ruas da Baixa até algo nos atrair – um cheiro, uma criatura caricata na porta de uma taberna, ou a lembrança de ir visitar uma tasca já conhecida ou outra de que soubéssemos a existência mas ainda não visitáramos. A propósito de cheiros, conhecemos “O Buraquinho” atraídos pelo cheiro de sardinha assada e ainda aí chegámos a beber uns copos algumas vezes, mais levados pela simpatia do dono, que fazia as contas em dólares (50 escudos eram 50 dólares), do que pela qualidade do vinho – péssimo!
Andávamos então pela Baixa a tentar deixar a nossa marca de “estudantes à antiga”, sem nos preocuparmos se aquilo que fazíamos era ou não de muito bom aspecto. Aliás, se fosse coisa de dar mau aspecto (não estou a falar de má educação), até era melhor, tinha mais graça. Certo dia, como não tínhamos dinheiro para entrar nos cafés e lanchar, resolvemos ir comprar latas de sardinha e pão e… para onde ir lanchar? Para o meio da Rua Visconde da Luz! Capinha estendida mesmo no meio da rua, em frente a um fotógrafo, sentados na capa, e toca a cortar o pão e a abrir as latas de sardinha; as pessoas passavam, olhavam para nós, riam-se e seguiam viagem sem parar. Levavam para casa um sorriso no fim do dia, levavam uma história para contar ao jantar e nós em nada saímos diminuídos com isso. O fotógrafo, entretanto, veio à janela e disse-nos que só nos faltava um garrafão de vinho; respondemos-lhe que viesse o garrafão, que morria ali; uns polícias passaram, sorriram, e disseram para que ouvíssemos: “belo sítio para um piquenique”; ao que respondemos que “por acaso…”. E o gato gordo e farfalhudo de uma daquelas lojas apareceu à porta e, hum!, que olhar deliciado que lhe deitámos!
Certa vez fomos até à baixa e levávamos um garrafão, para o trocar no “Pingo Doce”; dito de outra forma, o Marralheiro, que era caloiro, levava o MEU garrafão. Ao pararmos diante da ourivesaria Costa, vejo umas bengalas muito bonitas, de madeira, com o cabo em prata, e deu-me vontade de ter uma; e porque não havia eu de ter uma daquelas tão belas bengalas se eu tinha tudo para a ter excepto o dinheiro? Mandei então o Marralheiro entrar na ourivesaria e tentar trocar o garrafão pela bengala. O pobre desgraçado, com a sua lata costumeira, mas um pouco atrapalhado, lá entrou na loja com o garrafão na mão e perguntou o preço das bengalas; o ourives respondeu-lhe (creio que eram 27 contos) e o Marralheiro lá lançou a pergunta “então e não a quer trocar por este garrafão?”. O homem riu-se, deu-lhe uma palmadinha no braço e disse que não podia.
Entre muitas outras idas à Baixa, houve uma que ficou histórica, e que até deu origem a várias sequelas: a ida às tascas da Rua Direita. Isto vinha de uma ideia que já tínhamos há muito tempo e que era a de, um dia, ir até à Baixa e beber um copo de vinho em cada tasca. Um dia, pouco antes do Brandão acabar o curso, estivemos (eu, o Marralheiro e o Tomásio) a convencê-lo a vir até à Baixa fazer essa tal façanha; o rapaz não queria, mas tanto argumentámos com ele, que a vida de estudante estava a acabar e era a última oportunidade de vir beber uns copos à antiga boémia de Coimbra, que ele lá acabou por ceder. Fomos então até à Praça 8 de Maio e decidimos começar a nossa cruzada pela Rua Direita. Acontece que a Rua Direita tinha uma tasca em cada porta e acabámos por nem conseguir fazê-la toda. Claro que para isso muito contribuiu o Brandão que, tendo ficado bêbado rapidamente (e apesar de ter deixado de beber um copo de vinho nas tascas todas, pois senão caía para o lado), começou a demorar a beber (embora, como é óbvio, – e devido à péssima qualidade do vinho – todos nós começássemos a beber mais lentamente após a quarta tasca). Mas o malvado, nas tascas em que não bebia, queria que nos despachássemos e punha-se a gritar-nos aos ouvidos, numa cadência rápida e sem separar as palavras: “Bebe, bebe, bebe, bebe, bebe, bebe, bebe, bebebebebebebebebebebebebe…”. Que bêbado chato! Numa tasca encontrei um velho daqueles meios loucos que falam sozinhos, com cabelo e barba um bocado compridos e, olhando para ele, disse com ar solene:”Olha o Sr. Karl Marx”; dirigindo-me a ele e estendendo-lhe a mão, continuei: ”Como está, Sr. Karl Marx?”. O homem olhou para mim, estendeu-me a mão e, sem dizer nada, apertou-a com muita força, como se fossemos grandes amigos. Ainda noutra tasca íamos levando os quatro na tromba, e aqui por causa do Tomásio, que teimava em responder a um brutamontes que nos aviava aos quatro, se quisesse; esta começou porque na porta da tasca estava um letreiro que dizia “WE SPEAK ENGLISH, ON PARLE FRANÇAIS” e entrámos a falar francês e inglês; claro está que nestas tascas há sempre um bruto que tem inveja de nunca ter tido capacidade para estudar e que gosta muito de arranjar problemas com estudantes e que começou a embirrar connosco; o pior é que, por mais que decidíssemos estar calados, o Tomásio queria mandar sempre a última boca, o que fez com que o brutamontes se levantasse várias vezes para “arrear” no bêbado, obrigando os outros três a segurar o homem e a acalmá-lo; só que o Tomásio, quando o bronco se voltava a sentar, mandava mais uma boca e a história repetia-se. Nesse dia ainda tivemos mais uma aventura, em Outil, Cantanhede, a convite de um dono de uma tasca, mas essa história fica para outro dia.
Como nota final, apenas o reparo que nunca mais pensámos em fazer a ronda das tascas da Baixa, mas a “Ronda das Tascas da Rua Direita” institucionalizou-se e foi actividade que voltámos a fazer algumas vezes mais, à semelhança das “Rondas das Faculdades”, que é tema em que, certamente, pegaremos mais à frente.

2 comentários:

Anónimo disse...

Um regresso em grande, sim senhora. Estava a ver que nunca mais!
Um beijinho.

Norberto Botelho disse...

A primeira vez que descobrimos o "Buraquinho" o dono da tasca disse-nos todo orgulhoso: "Agora já podem dizer que foram ao buraquinho....eh eh eh eh". O homem coitado deve ter passado a vida toda a dizer o mesmo. E outra vez que fomos ao "Buraquinho", eramos um grupo de 5 ou 6. Pedimos sardinhas grelhadas e binho. Quando chega a vez de o Branqunho pedir, não é que ele queria...um copo de leite. O dono da tasca ficou com uma cara de espanto, lá arranjou o leitinho e antes de o servir ao Branquinho passa o copo em ar de gozo por uma mesa de 4 velhotes que estavam a beber penalties. Os velhotes fizeram uma cara de nojo e lançaram impropérios do tipo "Ai tira-me isso da frente!" "Não quero morrer intoxicado!". E o Branquinho lá bebeu o seu copinho de leite.