27 outubro 2007

Casamento do Batinas

Aos 15 de Setembro de 2007 o Dr. Batinas casou-se. Mas, como alguém que ama Coimbra, a Praxe e as suas tradições, as mesas do casamento tiveram temas diferentes do comum: a Praxe.
Assim, em cada mesa havia uma pequena moldura onde, sobre uma fotografia de fundo dedicada a cada tema, havia um pequeno texto sobre esse mesmo tema. Claro que, como havia temas sobre os quais era difícil falar muito, às vezes tentou-se fugir ao assunto com uma historieta mais ou menos próxima do assunto. Lamentavelmente, não consigo aqui pôr as fotos sob o texto, mas vou pôr os textos todos, para, já agora, todos poderem ter uma pequeníssima ideia acerca da Praxe de Coimbra e sobre Coimbra. Antes, porém, deverei avisar que a ideia é mesmo muito pequena, pois, por motivos óbvios (o de o texto caber, com letra legível, numa moldura de 15*20 cm) os textos tiveram que ser, necessariamente, curtos (o que, por vezes, foi dificílimo e, outras vezes, muito fácil).
Assim, as mesas do casamento, tinham os seguintes nomes:
CABRA
CAPA E BATINA
CARTOLA E BENGALA
COLHER DE PAU
FADO DE COIMBRA
FITAS
GRELO
GUITARRA DE COIMBRA
IRMANDADE DAS SOMBRAS
MOCA
PASTA DA PRAXE
PORTA FÉRREA
TESOURA
TRUPES




“CABRA”

Na Torre da Universidade encontra-se um relógio, sob o varandim, com um mostrador para cada um dos quadrantes, e os sinos: a Cabra que toca todos os dias às 18h, avisando os estudantes de que é altura de recolher ao estudo; o Cabrão, com o nome de macho da cabra por ter um som mais grave e que toca todas as manhãs anunciando aos estudantes que há aulas. Caso a Cabra não toque, é sinal de que não há aulas! Ao longo do tempo, afim de não terem aulas, o badalo da Cabra foi sempre um alvo de roubo por parte dos estudantes.
«No princípio do ano de 1933 foi a cidade assoada por forte epidemia de gripe. Os liceus, Escola Comercial e outros Estabelecimentos similares foram encerrados; só a Universidade fazia excepção.
Foi então que o grupo de 4 estudantes, Alfredo dos Santos Júnior, Auréliano Gonçalves, Domingos da Costa e Luís da Encarnação (resolveram roubar o badalo à «Cabra»).
Na manhã do dia 21 de Fevereiro a «Cabra», efectivamente não deu sinal de si, mas em substituição foi tocado o «Cabrão», sendo assim quebrada uma antiga praxe.
Passados 20 anos, a 23 de Dezembro de 1952, passeou o célebre badalo pelas ruas de Coimbra, em cortejo nocturno, até à Associação Académica de Coimbra onde ficou, sob alçada do Museu Académico.»

Carlos Manuel de Almeida, “ Revista Académica”

A Cabra toma esta designação na gíria escolar dado que o seu tinido «assemelha o balido de uma grande cabra, espécie de Minotauro, convocando mil e tantos filhos ao manjar da ciência».

O Amor dum estudante
Não dura mais q` uma hora
Toca a Cabra vai p´ ras aulas
Vêm as férias, vai-se embora

Afonso Lopes Vieira




“CAPA e BATINA”

Ao longo dos séculos, o traje dos estudantes foi mudando, consoante a moda e os usos da época. Desde a fundação da Universidade, em 1290, o uso do traje foi sendo obrigatório e facultativo, sendo que foi obrigatório desde 1834 até 1910, embora a Capa e Batina não fosse, até aos inícios do século XX, um traje uniformizado.
O uso da Capa e Batina é algo de que todo o estudante se deve orgulhar, uma vez que simboliza a igualdade entre todos os estudantes da Universidade de Coimbra.
É um traje de gala, de luto ou de uso corrente, consoante a ocasião a que se destine. Esta sua versatilidade permite que o estudante de Capa e Batina esteja sempre vestido de forma adequada a qualquer situação. Independentemente da ocasião em que é usada, o estudante deve comportar-se de uma forma sóbria e discreta, uma vez que a Capa e Batina simboliza mais de sete séculos de história e tradição. Deve por isso fazer-se respeitar com o seu comportamento, fazendo jus à vetusta Universidade de Coimbra, já que é a sua imagem de marca. Por esta razão, não podem ser usados simultaneamente com a Capa e Batina adereços que não se enquadrem neste espírito.
Como traje de uso corrente, esta deve ser usada obedecendo às condições estipuladas no Código da Praxe. Como traje de luto, a Batina deve ser abotoada à frente, as abas fechadas com o botão que está na lapela, e a Capa deve estar caída sobre os ombros e fechada no pescoço. Quando usada como traje de gala, a Capa e Batina deve ser usada com laço e sem colete, a Capa continua a ser obrigatória e, como em todas as situações de maior respeito, deve estar caída sobre os ombros, ou traçada, no caso das serenatas. A Capa pode também ser usada como forma de homenagem por parte dos estudantes, colocando-se sobre os ombros da pessoa a homenagear, ou ainda estendendo-se a Capa no chão de modo a que o homenageado passe sobre ela. Esta última é a maior honra que um estudante de Coimbra pode conceder a alguém.
Resta dizer que a Capa e Batina são sempre usadas em conjunto, não devendo nunca ser separadas.

A minha capa velhinha,
Tem a cor da noite escura...
Nela quero amortalhar-me
Quando for para a sepultura.

Ela há-de contar aos vermes
Já que não posso falar...
Segredos luarizados
Da minh’ alma a dormitar.




“CARTOLA E BENGALA”

A cartola e a Bengala são adereços que são usados pelos estudantes que estão no último ano do curso, a partir do dia do cortejo da Queima das Fitas até ao último dia dos festejos. Podem ser usados vários anos, desde que o estudante não acabe o curso e se mantenha no último ano (se mudar de curso, perde o direito de os usar).
Foi com o curso do V ano médico de 1931-1932, o curso do Dr. Henrique Pereira da Mota (o Pantaleão, que participa na história do placard da entrada), o curso dos cocos, que se iniciou esta tradição na Queima das Fitas.
Pela Praxe, os cartolados podem trazer apenas batina, cujas bandas devem ser de cetim da cor da respectiva faculdade e as abas arredondadas dobrando e pregando as duas extremidades inferiores, dando um aspecto de fraque.
A Cartola é de cartão, das cores do curso, ou, caso o cartolado seja veterano, pode ser preta com uma tira ou fita das cores do curso; ou das cores do curso com uma fita preta.
O laço e a roseta são das cores do curso; o laço também pode ser preto, mas não é usual, e a roseta usa-se na lapela do lado esquerdo da batina, podendo também ser substituído por uma flor natural.
A bengala é das cores do curso (fórmula mais usual), embora possa ser da cor natural da madeira ou, no caso dos veteranos, de cor preta.
Os cartolados costumam seguir a pé no cortejo da Queima das Fitas, normalmente à frente de um carro alegórico do seu curso (embora possam seguir, no cortejo, onde quiserem).
No fundo, a Cartola e a Bengala, fazem parte dos festejos da Queima das fitas e, tal como ela, representam a tristeza do adeus a Coimbra.
“Todas as cerimónias da Queima das Fitas, têm o seu quê de exéquias. São as fitas que se passam, acto simbólico em que está uma desistência – ávida despreocupada – o abandono de muita coisa: tudo o que Coimbra representa para a idade com que lá passamos – É o cortejo dos carros alegóricos, na verdade um adeus à cidade que nos acarinhou e que vem agora toda para a rua corresponder a esse adeus. É a cidade engalanada à beira dos passeios e pelas janelas lançando flores sobre os que, dentro em pouco, hão-de partir. São todos num gesto de quem agita lenços de despedida. Além daquelas, todas as cerimónias em que se desdobra a Queima das Fitas soam funebremente no nosso coração. O que se pretende é a euforia provocada pela exaltação. Estudante mais bêbedo é o estudante mais triste, é aquele a quem mais custa deixar Coimbra, aquele que acreditou que podia ser toda a vida rapaz e que só havia uma estação: a Primavera de Coimbra.”

António Rodrigues Lopes, “A sociedade tradicional Académica Coimbrã”




“COLHER DE PAU”

Considerada uma insígnia da praxe, assim como a moca e a tesoura.
A Colher é de pau e tem de ter escrito na parte interior «dura praxis sed praxis», podendo ainda ter qualquer desenho alusivo à vida académica.
Em caso de infracção à Praxe, é exercida sobre o infractor uma sanção que, na melhor das hipóteses, é a sanção de unhas e que consiste em bater com uma colher de pau nas unhas do infractor. Na aplicação da sanção, tanto o infractor como quem pune, devem ter os cotovelos encostados ao corpo e as colheradas deverão ser dadas de baixo para cima, sendo que, caso o infractor dificulte muito a aplicação da sanção através de uma má posição das mãos, as colheradas também poderão ser dadas de cima para baixo.
A sanção de unhas deve ser aplicada com uma Colher, no entanto, não havendo esta, é permitido o uso do sapato, se um veterano ordenar ao infractor que o descalce, a fim de com ele aplicar a sanção.
Há estudantes que têm o hábito de fazer um risco na Colher por cada caloiro ou bicho que rapam.
Partir a Colher nas unhas do infractor é um motivo de orgulho, embora seja uma situação muito rara.




“FADO DE COIMBRA”

“O Fado de Coimbra é uma canção tipicamente portuguesa, que surgiu em Coimbra, na sua secular Academia”.
Segundo Francisco Faria, trata-se de “uma canção terna, docemente saudosista, mas jovem no seu vigor, no idealismo das atitudes, na esperança de um amor realizável que se oferece, ao mesmo tempo espontâneo e elaborado, de melodia bem contornada e simultaneamente um pouco rebuscada.”
O Fado de Coimbra é normalmente caracterizado por uma relativa sobriedade, que permite caracterizar e distinguir determinada melodia de outra. A guitarra é o instrumento típico para tocar o fado, e é ela que, com os seus acordes, personaliza cada tipo de fado, acordes esses que são secundados pela viola que acompanha a melodia executada pelo guitarrista. Quando se fala no fado de Coimbra, a ideia de estudante está implícita, pois eram e são eles, salvo raras excepções, que o cantam e tocam.
“É inegável que o fado de Coimbra sempre teve uma ligação muito estreita com a Academia, fazendo mesmo parte integrante de quase todas as manifestações de índole estudantil, como por exemplo a Queima das Fitas”, bem como é inegável que foram os estudantes os responsáveis pela evolução até aos nossos dias do fado Coimbrão; foram eles, pois, que lhe deram a sua actual forma, transpondo, para aí, situações ligadas à vida estudantil e tendo, por vezes, o próprio fado, a vida académica como título.
Mais do que simplesmente regional, o fado de Coimbra tem sido um digno representante da nossa cultura onde quer que tenha sido tocado, levando a todos os cantos do Mundo um pouco da maneira de ser e sentir das gentes de Portugal.
O fado de Coimbra, de quem as noites da Velha Alta conheceram vozes inconfundíveis ecoando e repercutindo por vielas, recantos e escadinhas, penetrando por arcos e silenciosas janelas, é sem dúvida uma das mais expressivas manifestações artísticas e culturais da gente de Coimbra e de Portugal.
O Fado de Coimbra, ou Académico, é reconhecido pela sua nobreza de tal modo que tem vindo a ser entoado um pouco por todas as academias do país, daí que também no Porto e em Braga, por exemplo, se tente imitar o Fado de Coimbra.




“FITAS”

Consideradas uma insígnia pessoal, assim como o grelo, e cujos portadores usam com as cores da sua Faculdade, no dia do Cortejo da Queima das Fitas e até ao final dessa mesma, e durante um ano lectivo, desde as 10h do dia da latada ou cortejo de imposição de insígnias, até à hora do toque matutino da Cabra do dia do Cortejo da Queima das Fitas desse mesmo ano lectivo.
As fitas, tal como o grelo, devem ser recolhidas entre as 20h e o toque matutino da Cabra, aos domingos e dias feriados, no decurso das férias de Natal, Carnaval e Páscoa, e fora dos limites da cidade de Coimbra.
As insígnias pessoais dos Fitados são constituídas por 8 fitas de seda de 7,5 cm de largura e 40 cm de comprimento, presas em volta da pasta, que poderão ser assinadas, após as Férias da Páscoa, pelos professores, pais, noivo (a), mulher ou marido, colegas, amigos, parentes próximos, irmãos e colegas de curso.
Os estudantes que estejam em condições de acabar o curso usam as fitas nesse ano lectivo, e na falta de uma delas na pasta, ser-lhe-à aplicado sanção de unhas.
As cores das Faculdades são:

Medicina ............................................................Amarelo
Direito..............................................................Vermelho
Ciências e Tecnologia..............Azul Claro ou Azul Claro e Branco
Letras............................................................Azul Escuro
Farmácia................................................................Roxo
Economia...............................................Vermelho e Branco
Psicologia e Ciências da Educação......................Cor de Laranja
Desporto................................................Castanho e Branco




“GRELO”

Considerado uma insígnia pessoal, assim como as fitas, é usado pelos estudantes que se encontrem no penúltimo ano do curso.
O grelo é uma fita única e estreita em algodão, de 3,5cm de largura e 20cm de comprimento circundando a pasta e terminando em laço pendente para a frente, que só pode ter, no máximo, três nós, sendo que, se o laço de um quartanista, colocado na pasta, se desfizer quando puxado por uma das pontas, ser-lhe-á aplicada sanção de unhas.
A fita estreita de lã, dá duas voltas na pasta, no sítio em que esta dobra, fazendo-se depois um laço com as pontas da mesma.
Os portadores do grelo usam-no com as cores da sua Faculdade, no dia do Cortejo da Queima das Fitas e até ao final dessa mesma, e durante um ano lectivo, desde as 10h do dia da latada ou cortejo de imposição de insígnias, até à hora do toque matutino da Cabra do dia do Cortejo da Queima das Fitas desse mesmo ano lectivo.
O Grelo, tal como as fitas, deve ser recolhido entre as 20h e o toque matutino da Cabra, aos domingos e dias feriados, no decurso das férias de Natal, Carnaval e Páscoa, e fora dos limites da cidade de Coimbra.
Um dos pontos altos da Queima das Fitas é o Cortejo, o qual é organizado pelos grelados que, após queimarem o grelo (pois é, na Queima das fitas o que se queima é o grelo, não as fitas) desfilam em carros alegóricos, com as novas fitas na pasta, distribuindo comida e bebida às gentes da cidade e aos visitantes.

“Além do Baile, do Chá, da Garraiada, e de todo o mais pagode da Queima, havia ainda a suprema culminância: o Cortejo.
Era formado a partir da Alta (…) onde se encontravam o palanque em que se «queimavam as fitas». (…) A cidade era geograficamente pequena para tanto entusiasmo, e o cortejo durava horas e horas. (…) E só se sabia que o cortejo acabara, quando a noite chegava e os ânimos esfriavam.”

A.Nicolau da Costa, “ Boémia Coimbrã (dos anos quarenta)”.

Queimar o grelo é, actualmente, um acto quase simbólico!




“GUITARRA DE COIMBRA”

A designação de “Guitarra” advém do vocábulo grego Kythara, que mais tarde os latinos converteram em Cithara. Conta uma lenda que este nome provém de Cyterón, o nome de uma montanha situada algures entre a Beócia e a Ática. Mas há quem defenda que deriva sim de Cythara, o antigo nome da ilha grega Cerigo, a qual era considerada como o paraíso da poesia e do amor; há ainda quem prefira acreditar que a origem do nome guitarra remonta à Idade Média, tendo esta sido inventada por um mouro espanhol que daria pelo nome de Al-Guitar.
Mas é mais provável que a actual guitarra portuguesa resulte de uma fusão entre o Cistro Europeu, ou Cítara (utilizado em toda a Europa Ocidental durante o Renascimento, que apresenta uma forma extremamente semelhante e até, em alguns casos, o mesmo número de cordas e afinações que a guitarra, e que terá sido introduzido em Portugal no século XVI) e a Guitarra Inglesa (aqui introduzida no século XVIII).
Carlos Paredes acrescenta que já antes do Cistro, a nossa guitarra vai encontrar as suas origens na Cítola, instrumento da Idade Média. E, tentando definir com mais precisão esse "Instrumento musical a que chamamos hoje guitarra portuguesa", diz-nos que "foi inventado em Inglaterra na segunda metade do século XVIII", surgindo como "resposta à necessidade de obter do Cistro uma sonoridade mais emotiva e volumosa, de acordo com as transformações verificadas no gosto musical da época, a apontar para o Romantismo (...) foi-lhe dado o nome de Guitarra Inglesa".
Abandonada no resto da Europa, entre finais do século XVIII e princípios do século XIX, sobreviveu até aos nossos dias apenas na Escócia e em Portugal, aqui com o nome de Guitarra Portuguesa, instrumento que se adaptou às expressões da música popular urbana, como é o caso dos Fados de Lisboa ou de Coimbra.
É então que, no século XIX, respeitando o instrumento anterior, se adaptam as cabeças da viola de arame à guitarra e, como estas tinham doze cordas, alterou-se o encordoamento, redistribuindo-as em seis ordens de cordas duplas e adicionando cordas de aço aos bordões.
Segundo Armando Simões, a Guitarra de Coimbra passa a distinguir-se da de Lisboa já nos finais do século XIX, sendo exemplo deste facto a guitarra de Augusto Hilário, que tinha a escala mais comprida para o mesmo número de pontos, a ilharga mais estreita e passou a afinar dois pontos abaixo do lamiré, ganhando uma sonoridade mais grave, mais suave e melodiosa, bem ao estilo da música de Coimbra.




“IRMANDADE DAS SOMBRAS”

“A Irmandade das Sombras, como o próprio nome indica, é uma irmandade de sombras”. Boa!
Bem, para quem tem a honra de estar nesta mesa, não deve ter muito nexo explicar o que é a Irmandade das Sombras. Então, cito apenas isto:

“Eu que procurei extrahir da vida o que a vida, na sua melhor quadra, poude dar-me em gosos e prazeres, eu que não quiz preparar-me o remorso de ter deixado escoar-se, chilra e banalmente, a época da minha existência, que a Natureza destinou, quasi exclusivamente, para as alegrias e para os despreoccupados jubilos do ser humano, eu, enfim, que pretendi ser moço e realmente o fui – com que fundo sentimento de piedade olho hoje aquelles que, mesquinhos, egoistas e pessoas de juizo desde a infância, não pódem guardar da sua idade doirada, nem a recordação d’ uma aventura, nem uma cautela de prego, nem o perfume de uma saudade...!
Se algum leitor ponderado e sizudo encontrar nesses pedaços da minha vida, motivos para o seu reparo e censura, eu não reproduzirei apenas as palavras do altivo revolucionário: «não hesitaria em repetir o crime»; accrescentarei ainda do meu bolso: «e oxalá eu pudesse repeti-lo!».”

Pad’ Zé, “O livro do Doutor Assis”

Aquilae muscas non edunt (nin gordus nauseabunt).




“MOCA”

Tal como a colher e a tesoura, a Moca é uma insígnia da praxe, é de pau e não pode ter saliências na cabeça.
Na sua falta, pode ser substituída por um pau de fósforo, com a cabeça por queimar.
As Mocas tiveram grande utilidade quando da caça aos gatos, para partir os arames que ligavam as latas nas célebres latadas emancipadoras dos caloiros e nas guerras entre estudantes e futricas.

“ o Júlio Pinto (...) atirou os hercúleos braços à direita e à esquerda, derrubando o que encontrou, estudantes e futricas, e, saltando sobre um banco, sacudiu Miguel Pinto com um empuxão que o varejou longe, dando o grito de guerra de então: Avante Coimbra! Com um sarrafo das costas de um banco que quebrou, caíu com o resto da Academia sobre a futricada... Parecia Sansão com a queixada de burro a matar filisteus.”

Antão de Vasconcelos, “Memórias do Mata Carochas”

Mas não foram só úteis com a futricada, pois também caloiros e bichos, ao longo dos tempos, sempre que necessário, sentiram na pele o peso da Moca.

“(…) desenrolou-se uma manifestação de protesto contra as Trupes, mas, no dia seguinte, houve tremenda pancadaria (…) em que foram intervenientes uma dúzia de Bichos dos liceus e estudantes universitários, armados de Mocas e Colheres, formando Trupe.”

António José Soares, “Saudades de Coimbra”.




“PASTA DA PRAXE”

O uso da pasta da Praxe apenas é permitido aos doutores e doutoras da Praxe.
Os que usarem pasta da Praxe devem trazer dentro dela, pelo menos um livro de estudo, uma sebenta ou um caderno de apontamentos ou, na falta destes, um papel com um mínimo de 5 palavras escritas pelo seu portador.
Os Caloiros e os Caloiros Estrangeiros não podem pegar na pasta da Praxe, salvo se interpuserem entre ela e as suas mãos, qualquer peça do seu vestuário ou lenço.
Os Semi-Putos e os Pastranos podem usar a pasta da Praxe na mão tendo o braço completamente estendido, sendo-lhes vedado dobrar a pasta, virar a abertura para cima ou usar monograma.
Os Putos podem ter monograma na pasta, dobrá-la em espiral e virar a sua abertura para cima.
Os Quartanistas podem dobrar a pasta de modo a que as suas abas se inclinem para dentro.
Era com as pastas que se exercia a actividade da pastada realizada sobre os caloiros que eram esperados à saída das aulas e obrigados a passar entre duas filas de estudantes, e que com elas zurziam nas costas ou na nuca. As pastas, quando vazias eram leves, a força das pancadas era pequena e tinha apenas um efeito psicológico que, no entanto, não era dos mais agradáveis. O pior é que certos praxistas colocavam livros pesados e até pedras dentro delas e então as coisas mudavam de figura, tendo esta prática dado muitas vezes origem a conflitos.
No fim do curso, após o rasganço, a Pasta da Praxe também serve para esconder certas partes do corpo…




“PORTA FÉRREA”

Grande portão de acesso, pelo lado nascente, ao Pátio da Universidade, a Porta Férrea, que data de 1634, é uma porta dupla, que passa sob os aposentos da reitoria no ponto em que estes são contíguos ao antigo Colégio de S. Pedro. As duas fachadas do pórtico são semelhantes, distinguindo-se a custo pelas estátuas que o adornam, em cima, em nichos, a do rei fundador D. Dinis (na fachada exterior) e, do outro lado, a do rei que determinou a transferência definitiva e cedeu os paços, D.João III (fachada ao lado do Pátio), ambos com indumentária dos princípios do séc. XVII. A franquear a entrada, entre colunas, as figuras simbólicas da Faculdade de Teologia, Direito (fachada exterior), Medicina e Cânones (fachada do lado do Pátio). Rematando a composição, vêem-se, sobre os reis, de um lado e outro, estatuárias hirtas de Minerva.
Nesta Porta várias agressões se davam, como é o caso do Canelão, e como o próprio nome indica era o pontapé dado nas canelas dos caloiros. Esta agressão bárbara consistia em obrigar os alunos do primeiro ano, no primeiro dia em que se dirigiam às aulas, a atravessar o túnel que é a célebre Porta Férrea, entre alas de camaradas mais velhos que os agrediam, o mais fortemente possível, com pontapés nas canelas, só escapando a lesões dolorosas e às vezes graves os que se fiavam à sua agilidade e rapidez, galgando aqueles 15m em pulos esgotantes. Era um dia terrível, o dia de abertura de aulas! Aí só podia proteger o Quintanista, com a pasta colocada sobre a cabeça do caloiro; chamavam-nos Carontes.
Com a abolição do Canelão em 1898, viria a surgir a Pastada, actividade exercida sobre os caloiros que eram esperados à saída das aulas e obrigados a passar entre duas filas de estudantes, dos que usavam pasta, sem insígnias (pastranos) ou com insígnias (quartanistas e quintanistas) e que com elas zurziam nas costas ou na nuca.




“TESOURA”

Considerada uma insígnia da Praxe, assim como a colher e a moca, a Tesoura tem que ter bicos redondos, e não pode ser desmontável.
É destinada ao “rapanço” de caloiros, que se encontrem na rua após as 24h ou em julgamentos, Graus ou Processos de Atribuição de Culpas (PAC), estes últimos exercidos, ao longo das décadas de noventa do séc. XX e inícios do séc. XXI, pela Tesoural Tertúlia Irmandade das Sombras.
A Tesoura é um dos objectos mais importantes da Praxe de Coimbra, pois sem ela não seriam possíveis alguns dos mais belos momentos que se podem viver na cidade do Mondego, que é o caso da desparazitação do “animal” e toda a vivência que envolve essa desparazitação. No entanto, noutros tempos, por vezes, em vez de rapanço, umas bordoadas também fossem bom remédio para o caloiro.

“Foi apanhado na Baixa pela trupe (...) que lhe aplicou uma dúzia de bôlas.
(…) Pais Teles, exteriorizando o receio de que ele fosse caçado, por outra trupe na Alta (…) [disse-lhe] que preferisse ir pela Sé e entregasse ao Bernardo Lima ou à sua trupe, o escrito que nesse acto fez.
[o caloiro] seguiu afoito para a República, convencido que levava no bolso um salvo conduto e ao deparar com a anunciada trupe dirigiu-se-lhe e apresentou o escrito.
O Gasparinho leu e aplicou-lhe mais seis bôlas, oferecendo-se para lhe dar outro salvo-conduto, para a hipótese de ter novo mau encontro.
Soube-se depois que o bilhete (…) rezava assim: Já leva uma dúzia. Apliquem-lhe só meia dose”.

José Bruno Carreiro, “ Antero de Quental”




“TRUPE”

As trupes são grupos de três ou mais estudantes, de Capa e Batina, com as capas traçadas ou embuçadas (de forma a que não se vejam, por exemplo, os colarinhos da camisa ou os distintivos da Capa) subordinados a um ou mais chefes, que têm a pesada mas nobre tarefa de zelar pela observância da Praxe entre a meia-noite e o primeiro toque matutino da Cabra.
Normalmente a trupe é chefiada por elemento de hierarquia igual ou superior a quartanista (embora possa sê-lo por dois putos, desde que um deles seja das de medicina ou direito) e todos os seus elementos deverão estar na Praxe, ou seja, não poderão usar pulseiras, distintivos na lapela, ou outras coisas homossexuais hoje usadas por muitos estudantes (bandoletes, brincos, etc).
As trupes devem ser formadas com o bater três vezes da Colher de Pau ou Moca na Porta Férrea, porta da Associação Académica de Coimbra, ou portas de Repúblicas oficializadas, enquanto se diz “In nomen soleníssima Praxis trupe formata est” e, após a sua formação, todos os elementos que a constituem deverão manter a capa ininterruptamente traçada ou embuçada. É proibido transportar nas trupes Pasta da Praxe, livros ou outros objectos volumosos.
As trupes podem ainda trazer consigo um ou mais caloiros, que serão os cães de fila, que serão rapados caso a trupe não apanhe ninguém (mas, mesmo que apanhe, poderão estes ser rapados na mesma!).
No momento de identificar um possível infractor, alguém da Trupe deverá perguntar, por favor, o que é ele pela Praxe, sendo que se for um infractor, deverá ser posto debaixo de Trupe e ser aplicada a sanção que o chefe decretar, podendo ir de simples colheradas na unhas, até ao rapanço da crina, no caso dos caloiros ou bichos, se estas tiverem mais de dois dedos.
Para além das trupes ordinárias - referidas atrás – há ainda as trupes extraordinárias, de veteranos, de quintanistas, do Conselho de Veteranos, de Repúblicas e do Conselho de Repúblicas, mas isso são outros quinhentos…
É na segunda metade do séc. XIX (1883) que começa a Praxe de trupe. A origem da Praxe de trupe vem do facto de se ter acabado com o «foro académico» e o consequente findar das rondas da polícia académica.
Em 1312 D. Dinis ordena que sejam presos os estudantes que andassem na rua depois do 3º toque do sino da Sé. Com mais ou menos alterações, estas disposições foram mantidas e a polícia académica fazia rondas pelas ruas, prendendo os estudantes que apanhasse na rua após essa hora, metendo-os na cadeia da Universidade; os estudantes que fossem apanhados na rua após esta hora estavam sujeitos a pesadas penas; com o fim do «foro académico», passou a ser permitido aos estudantes permanecerem na rua após essa hora. Os estudantes mais velhos resolveram “castigar” os que chegassem entretanto e impor-lhes esse recolher obrigatório, ao menos por um ano. Assim surgiram as trupes, que, rapando os caloiros que andavam na rua após as seis da tarde, fazia ao mesmo tempo com que os professores soubessem quem eram os estudantes mais «borguistas». Os professores mais conservadores depois encarregavam-se de “tramar” esses “borguistas” à sua maneira.



À entrada, junto com as fotos iguais às que estavam nas mesas, e onde cada um poderia ver a que mesa pertencia, estava ainda um texto que, a meu ver, representa um pouco do verdadeiro espírito de Coimbra, um pouco o espírito que - embora com alguns limites, sobretudo da parte de alguns – norteou a malta da Irmandade das Sombras. Este texto sobrepunha-se ao emblema do Coral Quecofónico do Cifrão – Tuna da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra:

O Castelão de Almeida amava Coimbra como se ama uma mulher.
E depois deste amor só outro: o do vinho.
Realmente, as coisas não estão, aqui nas minhas palavras, bem definidas. Por Coimbra, era uma paixão. Enquanto que, pelo que respeita ao vinho, o Castelão de Almeida era um apreciador.
Uma vez, um amigo lá do Ribatejo timha prometido um pipo de qualidade apurada.
A «Real República Ribatejana» aguardava o acontecimento com uma ansiedade sem nome. E havia combinações para que a notícia fosse levada aos Gerais em quaisquer circunstâncias.
A vida seguia. Nessa manhã o Castelão tinha exame. Prova oral. Cadeira de responsabilidade e Lente cheio de exigências.
O interrogatório começa e as coisas não estão a correr mal para o Castelão. Resposta agora, silêncio logo, o exame vai avançando. O ambiente é sereno, quase afável, e na disposição do Lente adivinha-se já uma feliz decisão final.
De súbito, o Pantaleão aparece à porta. A boca arredonda-se-lhe na tentativa de comunicar uma notícia. A mão ergue-se á altura da boca num gesto muito especial. E há em toda a sua pessoa os repiques da intensa satifação. O coração apressa o ritmo. Pressente a alegre novidade. Então, a voz aclara-se-lhe, entonações de ressonância firme e, com respeitosa vénia, anuncia:
- Se me dá licença, Senhor Professor, desisto do exame!
O Lente, atónito, encara-o:
- Mas a sua prova está a correr muito bem.
E em tom de advertência, acrescenta:
- Olhe que faz mal!
- Pior faria, Senhor Professor, se deixasse correr o pipo inteiramente na minha ausência. E é o que vai acontecer se não me despacho. Com licença de V. Ex.ª
E, perante o pasmo de todos, o Castelão arruma os livros e levanta-se para partir. Mas não o faz sem explicar, já numa pressa, de raspão:
- Aquilo é um vinho de estalo. O melhor mimo do Ribatejo.
Quem estava na sala saiu, quem se encontrava pelas imediações aproximou-se. O Castelão corria e ia dizendo:
- Aquele é que eu não perco por coisa nenhuma deste mundo.
A bebedeira teve o preço de mais um ano em Coimbra.
Dolorosa é a hora da partida e benditos todos os acontecimentos que a adiam.
Podíamos agora falar aqui de formaturas que foram extraordinariamente longas, cada ano a multiplicar-se em dois ou três.
João de Deus esteve dez anos! O Pad–Zé não sei quantos. E o meu companheiro Barrigas de Carvalho que mostra agora pelas clínicas da América o seu profundo saber, quantos esteve?
ESTAS SÃO AS PESSOAS DE EXCEPÇÃO, OS VERDADEIROS ESTUDANTES DE COIMBRA!

João Falcato, “Palácios Confusos”

Já agora, antes que me saltem em cima com os direitos de autor, devo aqui acrescentar que estes textos foram, essencialmente, baseados no livro “A Academia de Coimbra” de Alberto de Sousa Lamy e no Código da Praxe Académica de Coimbra, de 2002, tendo algumas transcrições exactas (ou quase exactas) dos livros. Foi também efectuada pesquisa na Internet e noutros livros bem assinalados no próprio texto.

6 comentários:

Filipe Tourais disse...

Grande Batinas! Foi um prazer saber de ti e ler estas linhas. Um grande abraço!

Batinas disse...

Olha o Tourais, esse grande velhaco! Nunca me esquece aqueles julgamentos no Convénus, com o Tourais. Eram uma Moca. Um dia destes, ainda escrevo um post só com histórias tuas!

Simon Says disse...

Bem, eu sei que esta entrada no blogue já tem algum tempo mas como acabo de a ler, só agora é que posso comentar!

É que fiquei contente em saber que não fui só eu que tive no meu casamento Coimbra e a Praxe como tema! Nas mesas um pouco de tudo, desde miniaturas de mocas, guitarras, grelos, fitas e pastas e até as mesmas tesouras com as quais rapei uns quantos.As principais cores da decoração foram o vermelho e branco da FEUC e abundaram mesmo colheres de pau da praxe para todos os convidados ;)

Anónimo disse...

Boa tarde, carissimo, pode-me dar-me exemplos de situaçoes em que a capa e batina pode ser usada como traje de gala?
Por exemplo, uma cerimonia de assinatura de um importante protocolo de um faculdade com outra entidade, em que os alunos sao convidados para essa cerimonia, acha que se justifica usar capa e batina como traje de gala?

Batinas disse...

Claramente que sim. A capa e batina pode ser usada em qualquer situação solene en quanto estudante, mesmo num casamento, ir à missa, etc..

Nalgae Piraes disse...

Permitam-me que acrescente que, para o efeito, pode inclusive ser usada com laço (em vez da gravata), e com a camisa adequada para o efeito...
Cumprimentos