23 janeiro 2011

O Marralheiro- Parte 2


Como já tinha dito, o Marralheiro foi uma das personalidades mais importantes e marcantes da Praxe, da boémia e da inteligência em Coimbra em finais do século XX e inícios do século XXI. Como também já tinha dito, tive o privilégio de conviver muitos anos muito próximo dele, tendo, inclusivamente, vivido alguns na mesma casa. Aliás, felizmente, ainda hoje somos pessoas próximas, frequentando, com alguma frequência, a casa um do outro. Por tudo isto, e como era uma personalidade inquieta e atenta ao mundo que o rodeava, como era uma pessoa inconformada com a situação decadente da Praxe (aqui só me cabe falar disso) foi uma pessoa que viveu ao máximo a sua vida académica. E como eu estava perto, vivi muitas histórias com ele e aqui estou para contar mais algumas histórias daquele que se dizia ser uma pessoa abençoada, em virtude de ser trineto de padre, coisa de que muito se orgulhava.
Ora, certa vez o Marralheiro foi à Praça da República e, na altura, havia ali mais ou menos em frente ao sítio onde hoje é o Mc Donald’s um quiosque dos SMTUC. Já não sei o que é que o Marralheiro queria de lá, mas foi perguntar ao homem qualquer coisa. O homem foi extremamente mal e educado e disse que estava escrito lá fora, no meio de uma imensidão de papeis que estavam lá afixados; o Marralheiro olhou para aqueles papeis todos e não descobriu, pelo que voltou a perguntar ao homem a mesma coisa, ao que o homem respondeu:
- Está aí fora. Não sabe ler?
O que o homem foi dizer! O Marralheiro, de capa e batina, responde com maus modos:
- Não, não sei!
O homem sai lá de dentro aos berros:
- Se não sabe ler vá para as obras!
- Já lá andei muito!
- Pois volte para lá!
- E o Sr. Com essa voz, tinha jeito era para peixeiro!
E afastámo-nos, deixando o homem para lá, no meio da rua, a aconselhar uma nova profissão para o Marralheiro: obras!
Outra vez houve lá um debate qualquer, acho que no Teatro Académico Gil Vicente (não tenho já a certeza), sobre Praxe. Estavam lá uns gajos contra e a favor da Praxe no palanque, e um deles era um italiano que estava aqui de ERASMUS, com um aspecto horrível, muito guedelhudo, vestido como um mendigo, muito javardo, e que estava contra a Praxe, apesar de não ser de cá, não conhecer a nossa realidade, não perceber a nossa cultura, enfim, um estúpido. Quando chegou a vez do tal imbecil falar, parece que ele começou para lá a vociferar que quando chegou cá viu uns pinguins, que eram pinguins por todo o lado, que os pinguins isto, que os pinguins aquilo… O Marralheiro ficou danado e pediu a palavra; quando lha deram lá respondeu à letra ao italiano, lá lhe fez ver que ele não era de cá, não percebia nada disto, devia respeitar a nossa cultura, pois nós também não vamos para Itália dizer o que é que eles lá devem ou não fazer e terminou: “Já que acha que nós parecemos uns pinguins pela maneira como nos vestimos e nos chama pinguins, eu também posso achar que ele parece um urso e chamar-lhe urso, pelo aspecto que tem!”. Foi uma celeuma do caraças, os anti-praxistas danados, os praxistas do politicamente correcto também, mas o italiano lá ficou a ser conhecido, entre nós, como “o urso”.
Em determinada altura o Coral foi a Fazamões actuar. Fazamões era ali para os lados de Lamego (acho eu) e tínhamos sido convidados por um indivíduo que dizia que lhe apareciam as chagas de Cristo e que falava com Nossa Senhora. Ora, o gajo, o irmão Mário, era um charlatão como outro qualquer, que tinha umas cicatrizes nas mãos e tinha criado uma espécie de santuário onde os otários iam entregar o seu caroço. Ah! Parece que o irmão Mário disse que Nossa Senhora lhe tinha dito que ele ia morrer nesse ano. O Camurcalho era muito crente no irmão Mário e parece que o pai do Camurcalho até já tinha passado umas coroas para a mão do charlatão, que nunca lhas devolveu, nem vários anos depois da sua morte anunciada por Nossa Senhora, a qual fez a coisa indigna (principalmente vinda da mãe de Jesus Cristo) de dizer mentiras ao irmão Mário, pois o gajo não morreu nesse ano nem nos seguintes! Na altura o Marralheiro ficou muito impressionado com aquilo e trouxe uma fotografia que o irmão Mário lhe deu, numa postura muito angelical. Eu peguei na foto do irmão Mário e colei-a logo no quarto do Marralheiro, com um balão a dizer umas baboseiras quaisquer, mas em que acabava com qualquer coisa do género: “… e ainda vou sacar algum àquele gorducho que cá apareceu…”. Foi um fartote de gozo ao Marralheiro por causa do irmão Mário!
O Marralheiro era (e é) uma pessoa sábia. Era um indivíduo que sabia uma coisa que já quase toda a gente tinha esquecido: calcular raízes quadradas com o algoritmo da raiz quadrada e não só com máquinas de calcular. Então, lembro-me de irmos para as matrículas dos caloiros apanhar caloiros de direito e mandar fazer raízes quadradas de números enormes; os caloiros, claro, não as sabiam fazer. O Marralheiro começava a chamar-lhes ignorantes e dar-lhes uma pequena ajuda; os gajos, como não sabiam fazer aquilo, nem com ajuda lá iam, diziam que já não se lembravam, que já tinham aprendido a fazer aquilo há muito tempo e que já se tinham esquecido; ele perguntava-lhes com que idade tinham aprendido a escrever o nome e constatava que tinham aprendido há mais tempo e que ainda não se tinham esquecido! E continuava a mandar-lhes calcular a raiz quadrada e puxava-lhes as orelhas como a um miúdo que se porta mal, enquanto ia resolvendo aquilo à frente deles. Era um espectáculo, parecia um professor a ensinar alunos burros!
Quando o Marralheiro era primeiranista foi de livre vontade a um julgamento, aliás, um PAC, no Convénus Mustinto. Um veterano – o Tó Santos, que Deus o tenha – passou o mobilizatus documentum e lá foi ele, o Tomásio e o Salgueiro. Lá foram acusados, condenados e rapados. Ora acontece que nos PACs nós embebedávamo-nos forte e feio e eu, quando chegou a altura de rapar o Marralheiro já estava com tal cabra que já não queria saber de rapanços, preferindo estar a vomitar no telhado da vizinha. Mas o Marralheiro queria ser rapado por mim, pelo padrinho. Ainda pegou na tesoura, protegido pela capa (pois caloiro não pode tocar nas insígnias da Praxe, embora ele, tal como eu, nunca tenha sido caloiro!) e foi ao pé de mim pedir para o rapar; mas eu já não queria saber de nada disso, de tão mal que estava e mandei-o embora, o que o deixou, na altura, bastante triste. Mas não foi nada, outras ocasiões surgiram, até porque, como já disse, ele fartou-se de ir comigo em trupes como cão de fila e fartei-me de lhe dar simbólicas.
Pois é, como eu disse, foram muitos anos. Estive presente na serenata em que pediu a mulher dele em casamento e ele na serenata em que pedi a minha. Quando casou fui, obviamente, ao casamento dele. Tinha-me pedido para ler uma leitura na missa; já não me lembro muito bem, mas creio que havia três leituras e uma era para ser lida por mim, outra era para ser lida pelo irmão da noiva e outra já não sei por quem. Só que, quando cheguei à igreja e falei com o padre, o cunhado ainda não tinha chegado e o padre disse que lia eu as duas! Ele não quis contrariar o padre e tive que ler a leitura destinada ao irmão da noiva, o que muito o contrariou, mas o padre lá lhe deu a volta! Estava ali eu, era eu que lia! De cada vez que me lembro da cara do Marralheiro nessa altura, com receio que a noiva ficasse chateada… No fim, fiz de chauffer aos noivos: a minha mulher foi no carro de outro amigo, enquanto os noivos vieram no meu carro, conduzido por mim, ao som de Carlos Paião!

2 comentários:

Macho disse...

Era lindo, ver-vos praxar. Vocês eram tão experientes, tão cúmplices, que os caloiros não tinham capacidade nenhuma de argumentar. Quando entrei na faculdade, tinham a idade que eu hoje tenho, mas pareciam tão velhos, tão fortes, tão donos da razão. Durante o meu 2º, 3º e 4º ano, estar sentado no bar faculdade, na mesma mesma que vós e com mais 2 ou 3 caloiros, era das coisas mais divertidas que se podia fazer. Era um humor, embora diferente, ao nível do Gato Fedorento. Devia ter sido tudo filmado.

Abraço do candonga...

Doutor Marralheiro disse...

Muito obrigado pelos elogios. Mas, nada fiz de extraordinário, apenas tive a sorte de os meus pais me financiarem, o que me permitiu alargar a estadia por Coimbra. Tanto tempo refinou-me, o que é normal com a experiência que fui apanhando. É claro que só um grande amor pelas nossas tradições e um grupo fantástico de amigos permite atingir a dimenção que atingi no contexto em que me encontrava. Passou o tempo, e algumas coisas esquecem, pelo que vou acrescentar pequenas partes que faltam: Sobre a do Peixeiro, disse-lhe que ele dava era para peixeiro, devido à voz, mas que não se iria safar porque só vendia peixe podre. Sobre o urso, o tipo só cá estava à um mês e já estava à vontade para falar de 700 anos de história... Usava rastas, assentou-lhe mesmo bem o nome - URSO (",). Sobre o Irmão Mário, ainda hoje gozam, e com razão...
Sobre os calculos, é impressionante como malta com o 12º ano não sabe fazer contas elementares. Sobre o PAC, ainda hoje não te perdoei, pois se me tens rapado, talvez o cabelo tivesse ficado mais forte e eu não estivesse a ficar careca (",). Sobre o casório, as leituras e quem lia foi decidido na hora, nem tinhamos isso bem preparado, não me lembro se me preocupei na altura com alguma coisa...